segunda-feira, 27 de outubro de 2008

Terremoto .

Imagino que poderia ter acontecido assim: como um trem em alta velocidade que mergulha no abismo junto com uma velha ponte de pedra, desse modo eles poderiam ter sentido o terremoto que fez a casa desabar sobre eles e cercá-los com a súbita escuridão.

o jovem casal foi surpreendido na cama, no momento exato em que se deitavam nus, prontos para o ato de amor, segurando-se um no outro com medo, descobrindo que ainda estavam vivos e ilesos, porém cercados pelas trevas.

conseguiam mover-se na cama, mas não muito, seus membros tateavam paredes desmoronadas, superfícies ásperas de madeira e pedra, enquanto ouviam a água escorrer de alguma torneira mal fechada.

além disso, havia um silêncio profundo como a morte, o ar sufocante e empoeirado penetrava suas bocas secando a saliva, alcançando os pulmões e obrigando-os a tossir e ofegar.

não se podiam levantar, soltaram-se um do outro e viraram em direções opostas, e então abraçaram-se novamente, corpo com corpo, confortando-se mutuamente por ter sobrevivido.

teriam tido espaço e tempo mais do que suficientes para fazer amor, não fosse pelo terremoto, mas o desejo dissolveu-se para sempre, dominados pela angústia e pelo medo da morte, seus corações batiam acelerados.

o milagre de estarem vivos não era suficiente, não estavam a salvo ainda, o pior ainda podia acontecer, esperaram, em vão, um ruído ou sinal de algum sobrevivente, mas nada ouviram, apenas o silêncio sepulcral.

compreenderam que estavam enterrados vivos e que era improvável serem encontrados a tempo, que talvez outro terremoto os esmagasse, uma onda gigantesca os afogasse ou o fogo os queimasse vivos.

foram tomados por todo tipo de medo, o que os deixou profundamente inseguros, a mulher chorou nos braços do homem, e ele soluçou com ela até perceberem que aquilo de nada adiantaria, e não acharam mais consolo um no outro.

a vida não possuía mais significado, nem a própria vida e nem a do outro, começaram a perceber que aquilo era um esforço inútil, depois de algum tempo era tudo revoltante, o mau cheiro de urina e fezes que não podiam segurar.

o frio os dominava lentamente, assim como a fome a sede, permaneceram juntos ali, tremendo, a simples lembrança de uma gota d'água era por demais doída, seguida dos ruídos estridentes do vazio e náuseas provocados pela fome.

se tentavam falar, as vozes tornavam-se um chiado, e também não tinham o que falar, apenas alguns gemidos aqui e ali.

o desejo de morder os membros do outro tomou conta deles, o desejo sombrio de carne e sangue, ocorreu-lhes que poderiam comer partes do outro e sobreviver por mais tempo, resistir à fome e ao frio por mais tempo.

perderam a noção do tempo, do dia e da noite, tudo era escuridão e eternidade para eles, o mundo havia parado, estavam apenas surpresos pela demora da morte, pela dificuldade, e, quase sem se dar conta, começaram a morder os membros do outro e a sugar o sangue.

quando finalmente foram retirados das ruínas, estavam desacordados, o sangue congelado em volta da boca, e, quando voltaram à vida, não sentiam mais nenhum amor um pelo outro, e sim uma aversão incontrolável.

mas agora, não tem de ser assim, o casal que voltou a viver depois de ter estado tão próximo da morte pode vir a se encontrar novamente, vir a ser mais chegado um ao outro do que nunca, numa gratidão comum pelo retorno à vida após terem comido da carne e do sangue do outro, como participassem de um novo tipo de sacramento.