sexta-feira, 31 de outubro de 2008

Luz na escuridão .

O sol não nasceu.
Para ela, não importava mais.
Tornara-se um ser das trevas. Era na escuridão que se sentia à vontade. Não tinha que desfazer dos costumes.
A escuridão permaneceu por três meses, mas não influiu na sua vida. Rastejava entre coisas e pessoas sem ser percebida.
Até que um dia, conheceu-o.
Ele também gostava da noite, também mantera-se intacto ao que declaravam uma desgraça.
Passavam o tempo juntos, em silêncio. A companhia bastava à eles. Mantiam-se em um laço que não poderia mais ser quebrado.
Foi assim, até o dia em que o sol nasceu de novo.
Ela não o encontrou em lugar algum, nem mesmo durante a mais escura noite. Não poderia deixá-lo ir, precisava dele.
Buscou-o em toda parte, até que encontrou-o num celeiro abandonado, na escuridão.
Não foi mais vista, desde então.
Anos depois, encontraram-na no celeiro. A pele e roupas intactos, pupilas totalmente dilatadas, olhos vidrados no canto mais escuro do local.
Ela perdera-se no mundo de trevas, que outrora seu amigo Lúcifer lhe apresentou.

Nostalgia .

Sentado na beira do muro
ele balança os pés no ar.
observando o céu
às três da manhã.
não importa o barulho
dos carros,
quando o horizonte não tem
nada a dizer.
balançando-se na beirada
do décimo quinto andar
ele vê as luzes brilharem
mais uma dose de gim.
girando no ar, despede-se
das estrelas e cai.
girando lentamente no ar
o seu corpo não tem mais
peso, o luar que não
apareceu, sorri.
sente o corpo tocar o chão,
e o barulho não incomoda.
na estrada, às três da manhã
nunca esteve mais feliz.

segunda-feira, 27 de outubro de 2008

Sereno fim de temporal .

Arrastando os pés no asfalto
ela não olha para os lados.
a cabeça baixa segue
a sombra dos saltos quebrados
que o sol nascente reproduz.
a chuva fina deixa
os cabelos minguados colados
nos ombros.
o cheiro de cigarro e café
a mantém intacta do temporal.
as garrafas jogadas na rua
invertem as mentiras que vêem,
os olhos úmidos de escuridão
dançam no alvorecer.
arrastando os pés,
saltos quebrados nas mãos,
ela se desfaz a cada passo
deixando ao relento pedaços de si,
esquecendo memórias
e emoções.
ela parte, se parte
e se vai, esvaindo seu corpo.
um vazio vagando nas ruas
no fim de um temporal.

Poema de amor .

Ah! Agora preocupa-tes!
Pois já não sabes mais o que fazer.
Já não sabes mais pra onde ir.
Já não sabes mais o que sentir.
Tens medo de sofrer?
Pois que sofras!
Para que pagues tudo o que me causastes.
Que sofras, e morras sofrendo, então.
Pois quiçá, já não lamentarei ter-lhe perdido.
Crucificar-te-ei diante de meus olhos,
Para que sofrendo te veja, sofrendo por ti.
Lamentando os dias que passarei sem lhe ter,
Mas, orgulhosamente, lembrando de teus gemidos de dor,
Enquanto sofrendo, agonizavas na tão bela cruz,
Que lhe preparei com amor.
E se passarão dias até que se complete tua morte.
E esperarei que se concretize,
Diante de ti.
Apreciando, ouvindo, observando
Todos os sons que exprimires,
Todas as expressões de tua face,
Todos os movimentos de teus músculos em colapso.
E sorrirei, por fim, ao ver em teus olhos,
O último grito de dor,
Seguido então da morte, do fim.
E assim ficarei por semanas.
Fitando teus olhos sem vida,
Morrendo sem morte, a cada dia mais.
E tu ficarás lá.
Para sempre dependurado na cruz que lhe fiz.
Para que a cada dia,
Eu contemple a linda morte que sofrestes.

Olha lá .

É o amor que acabou.
é a mulher que se jogou
do 6º andar.
Olha lá,
ela se espatifou no chão,
e agora, os cães,
comem seus restos.
Olha lá,
seus olhos rolando
e rolando rua abaixo.
E os cães,
e os gatos,
correndo atrás.
Cena linda,
essa que se passa.

Lágrimas .

São coisas que escorrem quando o coração se espreme.
detalhes que sopram nas lembranças.
São gotas do sangue que se humilham.
Lágrimas são coisas que não mereciam atenção.
São reações indesejadas,
expressões do que se passa em meu interior.
Lágrimas são bocejos do pranto escondido,
alarmes do tédio.
Lágrimas são simples reações automáticas,
São coisas que não devem ser levadas à sério.

Puta .

Vejo-me parada, presa, ambígua, inerte.
Lamento-me, mágoas ressentidas devem ser deixadas.
Resta-me, pois, exercer o ócio, já conhecido.
O inebriante calor do tédio, que aguarda-me.
Espero então qualquer reação, movimento.
Aguardo-me.
Como aguardam-se as outras quaisquer.

Meu pecado .

É como doença. Posso senti-lo impregnado em mim, em meus olhos. É tão forte, que às vezes me faz chorar. Ouço suas vozes, vejo seus rostos - estúpidas faces esculpidas, de uma beleza excêntrica. Amo-o de uma tal maneira, que creio, superam-se os limites da lógica, da razão. Não há mais barreiras à mim. Sinto-me subjugada diante dele. Sinto-me tremula, inútil, fracassada. Vêm corroendo cada pedaço do meu corpo. Acaba, liquida de vez comigo. sinto-me morrendo aos poucos. Aos poucos diminuindo, e sumindo diante de todos. Ninguém percebe. Seja como for, um dia vou sentir-me só, e lá estará ele, atormentando-me novamente. Cada nervo de meu corpo já foi apossado, mas não me resta mais nada, a não ser esperá-lo. Esperar calmamente o fim. O odioso fim que nunca desejei. Me levará à uma eternidade ofuscada. Me levará ao inferno, ao seu inferno particular. Me trancafiará e me abandonará. Posso sentir, estou sentindo. Cada célula se despedaçando, desfalecendo. Estou virando pó. Estou voltando ao início.

Platéia .

E de repente você olha pra cima e percebe que o céu está cinza.
As pessoas te olham, e você pode ver misericórdia em seus olhos.
Você sente medo.
Você vê o mundo todo girando em torno de você, e chora.
As coisas acontecem e você sente que não tem o controle.
Você tenta fugir e se depara com um vidro, uma coisa que te separa da realidade.
Você olha em torno de si pra tentar achar uma saída.
Quando olha pra cima novamente, você percebe que o céu é falso,é só uma pintura.
As cortinas caem.
Era só um teatro de marionetes, e você era um mero objeto de madeira sem vida, sem valor, sem graça.
Agora chegou a hora de abandonar o seu palco, o seu mundo de mentiras e voltar pra caixa de velharias, o lugar de onde você nunca deveria ter saído.
Você só finge que vive, para que as pessoas se comovam com a sua história.
É reconfortante perceber que, ao menos, eles têm emoções.

Ócio .

Procurando solução pra problema nenhum, ele sai em busca de coisas novas.
a vida parece tão monótona desse lado.
você está apenas no olho do furacão.
a vontade de ver como é na periferia é grande.
ele quer ver como é a vida na parte mais tensa.
ele quer ver as pessoas e suas vidinhas pacatas sofrendo.
ele quer ver destruição.
você é tão sádico.
ele se cansa do tédio e resolve provocar seus pequenos terremotos.
ele acha engraçado ver a reação das pessoas.
ele age quando menos esperam.
você é tão sádico.
partindo de lugar nenhum ele espalha catástrofes naturais.
ele consegue o que quer sempre.
ele se cansou de não batalhar.
ele quer ver as pessoas batalhando.
elas fazem o que ele nunca conseguiu fazer.
você é tão sádico.
ele se cansou de destruir as coisas.
agora ele precisa de outra diversão.
e então, qual será a próxima brincadeira?
você está apenas no olho do furacão.
ele se senta e deixa a vida passar calma diante dos seus olhos.
ele se corrói por dentro quando não faz nada.
ele não aguenta mais esse tédio.
vai para a periferia, junto com os outros e deixa acontecer.
veja o que fazia com eles e divirta-se.
você é tão sádico.
agora sim, vamos ver quanto tempo ele resiste.
ele não suporta mais o tédio.
a vida pacata não é tão ruim.
o pior é tentar viver e não conseguir.

Estribilho de chaves .

Quando as noites não tem fim, e a dor é a única que corta a alma, o desespero profundo percorre as ruas escuras, a solidão não tem mais preço. quando o futuro não mais sorri e os gritos abafados ecoam no silêncio, quando a esperança é utópica e esqueletos vermelhos de sangue perseguem nos sonhos. uma luz pra me dizer que ainda vale à pena. quando escorpiões sobem pelas pernas e está em um cesto de cobras, quando a lua não tem mais céu, pequenas lagartas andam em fila. as folhas caem no chão e o estrondo que fazem é alto demais pra suportar. quando os desejos ressecam e o fim se aproxima, quando borboletas sem asas agonizam se arrastando pelo chão, a comida aprodece no corpo, o coração pulsa sem força. quando o sangue petrifica nas veias, pequenas agulhas furam a ponta dos dedos, formigas vermelhas devoram o ultimo pedaço do ser. quando um grito acorda na noite e um anjo negro lhe diz que foi só um sonho.

aos meus queridos anjos negros, que cheiram podridão, e me despertam, fazendo-me perceber o quão crua a realidade é.

"... e protege sua alma das angústias."

Vamos nos unir e gritar essa dor que corrói nossas almas.
vamos vomitar a podridão de nossos corpos.
você gosta disso.
você gosta de correr em torno desse abismo que você cavou.
cuidado para não tropeçar, xuxu.
acho que eu gostaria de ver você caindo e arrastando essa maldita cara nas pedras.
enjoei de você.
enjoei desse seu discurso hipócrita de que ninguém pode errar, quando é você quem comete mais erros.
olhe bem pra mim, me dê um sorriso.
esse será o ultimo.
que tal se eu contasse uma piada?
eu gostaria de te ver morrer sorrindo.
dê mais um passo pra trás.
veja aquele seu pesadelo de criança sorrindo gentilmente pra você.
como você pode ser tão covarde à ponto de ter medo disto ?
essa merda não vai fazer nada com você.
eu não aguento mais você reclamando o dia inteiro.
cala a porra da sua boca.
tenta ficar em silêncio pelo menos uma vez.
você não consegue né ?
você tem essa carência, essa coisa de precisar chamar a atenção dos outros.
eu poderia te pendurar em um outdor depois de te matar.
você ia chamar bastante atenção.
que tal ?
vamos, meu bem, me diga, como você quer morrer ?
sorria e se jogue logo nessa porra de buraco que você cavou.
espera, deixa eu registrar esse momento, deixa eu sentir pela ultima vez esse seu cheiro podre.
eu vou sentir sua falta.
vamos, sorria e pule, como você fazia no colo do papai.
aquilo não vai acontecer de novo.
pode deixar, que eu aviso ao restante das pessoas.
pode deixar que eu tapo essa merda que você fez aqui.
porque você tinha que fazer tanta sujeira ?
você é tão inútil que nem ao menos consegue cavar a porra de um buraco direito.
acabe logo com isso tudo.
você sabe que eu odeio te ver desse jeito.

Rotina .

Ela não suporta mais
tantos rostos,
tantos nomes,
tantos braços,
abraços,
carinhos.
ela não consegue mais
vagar às três da manhã
na cidade vazia.
ela não pode enxergar
um futuro que lhe prometeram,
o silêncio que ela esqueceu
na primeira noite.
ela caminha de costas
buscando um passado presente
aos olhos de um negro felino.
ela tem que quebrar o agouro
de um encontro na madrugada,
daquela alma que não existiu.
deitada no vácuo ela pode ouvir
o som das estrelas,
dormir à luz da solidão.
com o barulho do mar,
ela acordou.
e descobriu que estava morta.

Tantos pedidos de desculpas .

Precisava pensar um pouco. Saiu, mesmo sendo quatro da manhã. Certamente conseguiria encontrar um bar aberto. Sentiu frio. Isso não era tão importante agora. Andou oito quadras, até que encontrou algo aberto.
Era um mercado pequeno, que nunca havia reparado, mesmo sendo tão perto de casa.
Comprou um refrigerante e um pacote de biscoitos e sentou-se alguns metros depois, na beira da calçada. Comia vagarosamente, até que reparou num poste de luz em curto. Permaneceu observando a chuva brilhante que dele saía. Ficou assim até o amanhecer.
Não pensara em nada durante esses momentos. Perdeu-se dentro de si.
Com frestas de sol batendo no rosto, acordou do torpor faiscante. Alguns raros carros passavam pela rua, e reparou num mendigo do outro lado da rua. Também nunca reparara nele antes.
Levantou-se, entregou o refrigerante completamente cheio e os biscoitos, faltando somente uma unidade, à ele, com um sorriso no rosto. Permaneceu observando-o comer com gratidão.
Voltou pra casa um pouco feliz. Havia ajudado alguém, ao menos.
Entrou, tirou os sapatos, sentou-se no sofá da janela e, observando a rua, ouviu mais uma vez a mensagem que lhe fizera sair quatro horas atrás. Era uma mensagem longa, não suportara ouvir até o final na primeira vez.
Escutou-a totalmente em silêncio, por duas vezes. Não queria deixar escapar nenhuma palavra, nenhum detalhe. Permaneceu mais alguns minutos no sofá.
Ergueu-se, caminhou até o quarto, onde escreveu em seu travesseiro "DESCULPE POR ENVOLVER VOCÊS NISSO". Foi à despensa, pegou o machado que guardavam para cortar lenha em acampamentos. Ao voltar ao quarto, colocou no rádio sua música favorita, seu último prazer antes de livrar-se. Deitou-se na cama, ao lado do recado e posicionou a lâmina, de maneira que cortasse-lhe a cabeça quando caísse. Soltou-a.
Seus companheiros de quarto retornaram 4 dias depois e, logo ao entrar na casa, embalaram-se na canção repetitiva. Segundo os vizinhos, repetia-se há dias.
A mesma música, o mesmo refrão. A mesma dor.

"What else should I be
All apologies
What else could I say
Everyone is gay
What else could I write
I don't have the right
What else should I be
All apologies. "




All Apologies, Nirvana.

A melodia dos trilhos .

Olhava sem atenção a paisagem. Não gostava do jeito que aquilo passava diante de seus olhos.
Eram seis da tarde e, mesmo com o trem cheio, sentia-se só.
Não estava ali, junto àquela multidão de chegava aos montes.
Estava mais longe que isso. Muito mais longe que qualquer um ali.
Sentiu medo.
O trem pára, aos poucos as pessoas vão saindo. É a última estação. Sai.
Senta-se no chão, ao lado de um homem que toca violão em troca de alguns trocados.
Ele está tocando uma música conhecida agora. Chora.
Quase instantaneamente, o homem pára de tocar.
Não foi um choro desesperado. Nem ao menos emitiu som algum.
Ele não perceberia, ao menos que estivesse olhando para ela. E estava.
Olhava-a com preocupação e, depois de alguns instantes, perguntou qual era o seu nome.
Sem resposta.
Foi muito gentil, mas parou de falar quando percebeu que não conseguiria despertá-la daquela maneira.
Voltou à tocar a música que lhe fizera chorar, observando sua reação. Voltou a chorar.
Dessa vez, ele não parou. Tocou a música até o fim.
Quando a música acabou, ela já não chorava mais. Olhou-o e sorriu.
"Meu nome é Louise."
Permaneceram se observando alguns instantes, até que ela apontou o violão e pediu para tocar uma música.
Tocou. E era como se a música fosse ela, e os sons saíssem dos seus poros. Como se cada movimento dos seus cabelos fizessem parte de uma sinfonia que ele jamais ouvira antes.
E essa sinfonia era dela, compusera na viagem até ali.
Ele entendeu, e acenou com a cabeça.
"A escrevi, porque quero minha vida espalhada pelos cantos. Posso confiar isso à você ?"
Sim, é claro que poderia. Ele tocaria-a todos os dias, fazendo as pessoas à sua volta cantarem-na também.
Ela agradeceu com um sorriso e remexeu a bolsa.
Retirou um papel. Nele estavam escritos as notas, a letra. Entregou-o ao homem.
Despediu-se, o trem estava chegando. Olhou para aquele homem que acabar de conhecer e cantou o ultimo verso da música:
"Despeça-se do Sol por mim."
Jogou-se nos trilhos, sendo arrastada no mesmo instante pelo trem.
Agora, ele entendera porque a musica lhe era tão forte. `
Ela colocara sua alma nela. À cada verso que cantava, um pouco da vida lhe ia embora.
Entendera, então o porque do pavor em seus olhos. Era o próprio som da sua morte chegando mais perto, à cada acorde tocado.
E ele empenhou-se em tocar a música.
Espalhou a vida de Louise nos lugares que pôde.

O contraventor .

Esperava distraído o trem do metrô chegar. Na estação silenciosa, as caixas de som irromperam.
“Para sua segurança, aguarde o trem atrás da faixa amarela”.
Entediado, conferiu que seu pé avançava alguns centímetros na grossa faixa amarela da plataforma. Não havia perigo, o trem não vinha e depois da faixa jazia quase um metro de espaço até o fosso.
Bulia com a faixa. Através da sola emborrachada do tênis, sentia a textura, o relevo, a forma da faixa amarela de segurança. E o trem não vinha.
“Para sua segurança, aguarde o trem atrás da faixa amarela”. Olhou para os lados, a estação muito vazia. Ao longo de toda a plataforma ninguém que valesse a pena notar esperava o mesmo trem. Tardava a noite e eram os últimos minutos de funcionamento da linha. Não pode deixar de pensar que o aviso era diretamente dirigido a ele.
Envergonhou-se e resignou seu pé alguns centímetros para trás e aguardou o trem, procurando algo na estação que distraísse sua atenção até que passasse a tal vergonha. Felizmente nessa hora, já vinha o trem.
A composição chegou acelerada, trazendo o vento fresco dos túneis para dentro da estação. Fechou os olhos a aproveitou aquela lufada que balançou sua roupa e seu cabelo. O vagão que estacionou diante dele estava quase vazio quando entrou. Um homem na outra ponta semidormia ensebando o vidro com seu cabelo sujo. Mais próxima, uma mulher gorda lia a bíblia.
Era tarde da noite e estava cansado do dia de trabalho. Seriam doze estações até o seu destino. Sentou-se. O bip anunciou as portas que se fechavam e o trem seguiu seu rumo. Vazio, o vagão era uma caixa acústica ensurdecedora ampliando o estrondo do movimento da composição.
Chegavam já a outra estação e assim que se abriu a porta, o aviso de segurança ecoou. “Os bancos de cor cinza são reservados para idosos, gestantes e pessoas com dificuldade de locomoção. Seja cidadão, respeite esse direito”. Sobravam bancos vazios e ele se perguntava porquê deixar automatizadas essas mensagens se em tais horas perdiam totalmente seu sentido.
O trem tardava a partir. Ainda pensando na mensagem despropositada, procurou em volta pelos bancos cinzas. Não os pode encontrar. Para sua surpresa, sentara-se sobre um deles.
Riu-se pensando que de novo a mensagem seria para ele. Seria a demora do trem uma espera emburrada para que ele abandonasse o lugar reservado aos pobres velhinhos? A imagem do condutor de braços cruzados vendo em uma tela preto e branco o rapaz sentado no banco reservado veio à sua cabeça. Riu de si mesmo, ao pensar no pé direito do condutor batendo com marra no chão da cabine.
Mas o trem não se movia. Os outros passageiros já irrequietos pelo tardar em partir se agitavam no banco e esticavam o pescoço para fora a fim de descobrir se algo se passava.
Passavam-se os minutos e o trem não se movia.
Ele decidiu levantar-se e ir meter a cabeça na plataforma para ver se via algo. No que alçou seu corpo para fora do reservado banco cinza, o bip disparou e as portas se fecharam. Por um segundo, ele congelou na posição. O trem lançou-se ao movimento e o impulso jogou seu corpo de lado. Teve que segurar e botar-se firme no chão. Virou-se para os outros passageiros no ímpeto de saber se haviam, eles também, percebido a estranha coincidência. Tal e qual, o homem prosseguia ensebando o vidro e a mulher gorda lia a bíblia.
Devia estar ficando neurótico. Riu-se de si e foi sentar. Escolheu dessa vez um banco marrom, de dois lugares. Melhor. Assim teria espaço para esticar as pernas. Pernas dobradas, apoiava as solas emborrachadas do tênis no banco e observava o passar de algumas luzes e arquiteturas subterrâneas indecifráveis para quem passa a dezenas de quilômetros por hora.
Dentro do vagão, a tinta das paredes já descascava, mostrando as antigas tonalidades pelas quais já haviam passado. Decidiu escarafunchar a história daquela composição e com as unhas, buscou tirar uma lasca da tinta velha, comparar as cores. O trem chegava a uma nova estação. Portas abertas, irrompeu o aviso de segurança. “O metrô é o seu meio de transporte, não danifique assentos e instalações. Denuncie qualquer ato de vandalismo”.
Sem pensar, largou a tinta descascada e sentou-se direito no banco em que estava. Isto feito, o bip se seguiu ao aviso e, sem mais demora, portas fechadas, a composição partiu.
Já era mais que uma mera coincidência. Com tão poucas pessoas no metrô, para que tantos avisos de segurança? Duvidava se seriam mesmo automáticos. Voltava a sua mente a imagem do condutor olhando uma tela cinza onde estava filmado o seu vagão.
Procurou em volta por câmeras que o delatassem. Sentado como estava, não podia ver todo o vagão. Às suas costas, sabia que estavam os outros dois passageiros. Que estariam eles pensando? Perceberam que todos os avisos se dirigiam a um colega de vagão? Teriam eles também se irritado com o suposto vandalismo?
Olhou.
Nada. O mesmo ensebamento no vidro, a mesma bíblia aberta. O trem chegava a mais uma estação.
Pareceu a ele que horas se passaram desde que embarcara, três estações atrás. Mas não tinha relógio, não podia saber. Mais uma vez o trem se demorava um pouco. No pulso da mulher gorda, reluzia um relógio prateado. Decidiu ir até lá, perguntar as horas. Pela reação dela, pelo tom da voz, saberia se ela havia percebido algo.
Fixou os pés no chão e ergueu-se. “Pedir esmolas e vender produtos nos vagões do metrô é crime. Não incentive essas práticas ilegais”. No que contornava seu assento em sentido à mulher irrompeu esse aviso. Ela ergueu os olhos e o viu.
Parado, pateticamente olhando para ela com olhos estalados, ele segurava no apoio de metal, quase desequilibrando. Paralisado pela resposta imediata do condutor. Agora não tinha dúvida, era com ele!
A mulher o olhou com desdém, ajeitou os óculos, olhou as horas e meteu a cabeça na bíblia. Ele estava gelado. Nunca pensou que dentro dos vagões havia uma vigilância tão severa. Essa última tacada foi injusta! Ele não ia pedir esmolas. O maldito condutor utilizou essa artimanha para impedi-lo de pedir socorro e retomar a sanidade. Daqui pra frente, era vida ou morte!
O bip tocou novamente e as portas estavam por fechar-se. Como uma flecha ele tentou se projetar para fora do vagão, apenas para perder a corrida contra o sistema automático de fechamento das portas. “Ao ouvir o bip, não saia nem entre no trem. Evite acidentes”. Depois do aviso, o trem partiu para a próxima estação.
Era a gota d’água! Dois avisos numa mesma estação. Era com ele! Com certeza o condutor o perseguia e agora fazia uma ameaça direta! “Evite acidentes”. O que ele queria dizer com isso? Tratava-se de uma ameaça. Agora restava apenas uma chance: descer na próxima estação, o mais rápido possível.
Enquanto o trem corria por um túnel interminavelmente longo, ele, parado, estancado em frente à porta, se arrependia de ter desafiado o primeiro aviso. Para que bulir com a faixa amarela? Se ela está lá, deve ser respeitada. Por quê ele foi pisar na faixa, depois de um aviso tão direto? Tão claramente dirigido a ele. Era isso... Ele seria feito de exemplo por seu desrespeito às leis de segurança. Tratava-se agora de fugir. Abandonar o campo de batalha e virar-se com um ônibus seguro e sem alto-falantes direto para casa.
Chegava uma nova estação. Alegrou-se. Mas passando rápido pelos primeiros metros de plataforma, viu o vulto de uma equipe de seguranças do metrô. Quatro homens grandes, vestidos de preto, cassetetes em mãos, esperavam por algo, ou alguém.
O trem parou. As portas se abriram, mas ele não se moveu.
Que fazer? Sair significava enfrentar aquela tropa de choque. Ficar seria submeter-se a um fim desconhecido durante mais tantas estações nas mãos do condutor que jurara vingar o seu desrespeito e o ameaçara com algum acidente. “Não segure as portas, isso atrasa a viagem e pode causar acidentes. Colabore”.
Seria outro aviso? O que ele queria dizer? Que fazer agora? Para sair antes do bip teria que ser uma decisão rápida, esse aviso já havia sido dado. Os seguranças vinham agora, na direção do seu vagão quando o bip disparou.
Transtornado, ele segurou as portas que tentavam se fechar e precisou de muita força para isso. Não poderia suportar mais nem uma estação sob o olhar vigilante do condutor. Sem poder partir, a composição reabriu suas portas. Ele estava livre. Deu um passo para fora do trem e os seguranças, quatro deles, enormes, estavam ao seu lado.
Não soube dizer como foi, mas em segundos encarava a parede da plataforma de embarque. Dois seguranças o imobilizavam torcendo seus punhos enquanto um terceiro metia-lhe algemas. O quarto segurança deu sinal para o trem partir. Um sinal que só poderia ser visto pelo condutor através de câmeras. Aí cessaram as dúvidas. Estava em maus lençóis pela sua bravata de antes, com a faixa amarela. De soslaio, viu no seu vagão que, perdido de sono, o homem ainda ensebava o vidro da composição. A mulher gorda segurava a bíblia ainda aberta nas mãos e observava, distante e orgulhosa, a ação dos seguranças do metrô.

“Próxima estação: Carandiru”.

(im) Proposital .

Não, ninguém a viu tentando se matar. Ninguém percebeu que fosse isso. Ninguém imaginaria que ela, que está sempre sorrindo, tentaria acabar com a própria vida. Mas ela não aguenta mais. As coisas dentro dela não estão bem.
Foi caminhando calmamente, recolhendo as cápsulas no percurso até o bebedouro. Nunca esteve tão tranquila. Por detrás dos óculos, sorriu à uma amiga. Ninguém deveria saber que foi proposital.
15 cápsulas, no total, de duas drogas diferentes. Achava que aquilo seria suficiente. Engoliu-as aos poucos. Haviam pessoas à sua volta, mas à elas, pouco importava se ela tentava se afogar no bebedouro, tomava quase duas caixas de remédio ou simplesmente bebia água. Para eles, pouco importava se ela estaria ali no dia seguinte, ou não.
Ao terminar, entrou com um sorriso triunfante na sala de aula. Enfim, conseguira coragem para fazer algo que planejava há alguns meses.
Sentou-se, esperando o efeito.
O efeito que não veio.

A casa .

A casa está escura na penumbra da noite de verão, não há ninguém em casa ou estão dormindo, você está escondido no vidoeiro frondoso, certo de não estar sendo visto por ninguém, observa a casa e tem um impulso de entrar nela. basta atravessar o gramado sem pisar o caminho de pedra que leva à entrada e assim aproximar-se da janela sem fazer barulho.

caminha pela grama, com cautela, e sobe numa das janelas, a que está ligeiramente entreaberta. entre as cortinas semicerradas, você enxerga o interior de uma sala que está completamente escura, um sofá com algumas almofadas de cores claras, um aparador com objetos reluzentes; parece não haver ninguém ali e não há nenhum sinal dos moradores.

você se movimenta para ver através da outra janela, enxerga uma cama e os contornos de duas pessoas debaixo de uma coberta branca, parecem estar deitados de costas, lado a lado, com os rostos virados para cima, vagamente identificados como dois contornos ovais.

você não os vê fazerem o menor movimento e não escuta ruído de respiração, tão imóveis, que poderiam estar mortos e você começa a acreditar que talvez esteja.

pode ser um casal que tenha cometido suicídio e você hesita em dar o próximo passo, se estiverem mortos é tarde demais para salvá-los, você reluta em intervir, não quer se meter num drama que não lhe diz respeito.

afasta-se da janela, em silêncio, e retorna a posição sob a proteção do vidroeiro.
na verdade, você nunca saiu dele, apenas imaginou o que viu dentro da casa.

Luzes de emergência .

Esperava quieta o metrô chegar. Tivera um dia longo e mal podia esperar para mergulhar na banheira quando chegasse em casa. Acendeu um de seus cigarros e, mal deu o primeiro trago, a composição chegou. Apagou-o na parede e deixou-o cair no chão. Sentou-se numa das cadeiras amarelas, o metrô não ficava tão cheio naquela hora da noite. Além dela, somente mais uma dúzia de pessoas. Não se preocupou em olhar em volta, estava tão cansada que dormiria ali mesmo. Ao seu lado, um garotinho distraía-se com um vídeo game barulhento. O metrô parou alguns quilômetros depois, dentro de um túnel. As luzes de emergência se acenderam e as pessoas se agitaram. Lúcia não percebeu. Ela estava tão cansada, que pensou que aquilo fosse um sonho, um devaneio. Afinal, o vídeo game irritante continuava em meio à algumas vozes.
Baixou a cabeça e deixou-se levar pelo devaneio em tons de vermelho.
"O que aconteceu ? Como vamos sair ? As janelas estão trancadas ! O que está acontecendo ? Ajudem-nos !" As frases se formavam na cabeça de Lúcia como se ela fizesse parte de um filme.
"É só um sonho" , falou para si mesma.
O vídeo game parou, as vozes silenciaram-se. Mas tudo ainda era vermelho.
Ouviu uma mulher sussurrar: "Ajudem-me !" Depois, não lembra de mais nada.
Chegou em casa, tirou os sapatos, pendurou a bolsa, ligou a torneira, tirou a roupa, prendeu o cabelo, deitou-se na banheira e fechou os olhos. Lembrou-se do dia estranho que teve, do rosto de algumas pessoas entrando no metrô. Ela estava cansada. Dormiu e sonhou o mesmo sonho de antes. O mesmo vídeo game irritante, as mesmas luzes vermelhas, o mesmo sussurro feminino.

Lúcia nunca mais acordou.

A mulher de bruma .

Não é bonita nem feia, é impossível formar uma idéia do que seja, ela é o que deseja, nem mais, nem menos.
move-se pelos campos e prados feito nuvem, como se dançasse sobre inúmeros pezinhos.
se possui boca, não tem lábios para beijar, somente um buraco redondo que parece abrir e fechar na bruma.
de repente, ela possui um olho, ou dois, azuis, cintilantes, mas sem formato; não como zeros ou nascentes, mas como fontes correntes.
ela é mais fria do que quente, o calor que se experimenta vem de si mesmo.
desiste-se, com o cansaço de quem acabou de fazer amor.
mergulha-se na grama, e de repente, o sol começa a brilhar.

Terremoto .

Imagino que poderia ter acontecido assim: como um trem em alta velocidade que mergulha no abismo junto com uma velha ponte de pedra, desse modo eles poderiam ter sentido o terremoto que fez a casa desabar sobre eles e cercá-los com a súbita escuridão.

o jovem casal foi surpreendido na cama, no momento exato em que se deitavam nus, prontos para o ato de amor, segurando-se um no outro com medo, descobrindo que ainda estavam vivos e ilesos, porém cercados pelas trevas.

conseguiam mover-se na cama, mas não muito, seus membros tateavam paredes desmoronadas, superfícies ásperas de madeira e pedra, enquanto ouviam a água escorrer de alguma torneira mal fechada.

além disso, havia um silêncio profundo como a morte, o ar sufocante e empoeirado penetrava suas bocas secando a saliva, alcançando os pulmões e obrigando-os a tossir e ofegar.

não se podiam levantar, soltaram-se um do outro e viraram em direções opostas, e então abraçaram-se novamente, corpo com corpo, confortando-se mutuamente por ter sobrevivido.

teriam tido espaço e tempo mais do que suficientes para fazer amor, não fosse pelo terremoto, mas o desejo dissolveu-se para sempre, dominados pela angústia e pelo medo da morte, seus corações batiam acelerados.

o milagre de estarem vivos não era suficiente, não estavam a salvo ainda, o pior ainda podia acontecer, esperaram, em vão, um ruído ou sinal de algum sobrevivente, mas nada ouviram, apenas o silêncio sepulcral.

compreenderam que estavam enterrados vivos e que era improvável serem encontrados a tempo, que talvez outro terremoto os esmagasse, uma onda gigantesca os afogasse ou o fogo os queimasse vivos.

foram tomados por todo tipo de medo, o que os deixou profundamente inseguros, a mulher chorou nos braços do homem, e ele soluçou com ela até perceberem que aquilo de nada adiantaria, e não acharam mais consolo um no outro.

a vida não possuía mais significado, nem a própria vida e nem a do outro, começaram a perceber que aquilo era um esforço inútil, depois de algum tempo era tudo revoltante, o mau cheiro de urina e fezes que não podiam segurar.

o frio os dominava lentamente, assim como a fome a sede, permaneceram juntos ali, tremendo, a simples lembrança de uma gota d'água era por demais doída, seguida dos ruídos estridentes do vazio e náuseas provocados pela fome.

se tentavam falar, as vozes tornavam-se um chiado, e também não tinham o que falar, apenas alguns gemidos aqui e ali.

o desejo de morder os membros do outro tomou conta deles, o desejo sombrio de carne e sangue, ocorreu-lhes que poderiam comer partes do outro e sobreviver por mais tempo, resistir à fome e ao frio por mais tempo.

perderam a noção do tempo, do dia e da noite, tudo era escuridão e eternidade para eles, o mundo havia parado, estavam apenas surpresos pela demora da morte, pela dificuldade, e, quase sem se dar conta, começaram a morder os membros do outro e a sugar o sangue.

quando finalmente foram retirados das ruínas, estavam desacordados, o sangue congelado em volta da boca, e, quando voltaram à vida, não sentiam mais nenhum amor um pelo outro, e sim uma aversão incontrolável.

mas agora, não tem de ser assim, o casal que voltou a viver depois de ter estado tão próximo da morte pode vir a se encontrar novamente, vir a ser mais chegado um ao outro do que nunca, numa gratidão comum pelo retorno à vida após terem comido da carne e do sangue do outro, como participassem de um novo tipo de sacramento.